terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"A vida é sonho" - Pedro Calderón de la Barca



Ai mísero de mim! Ai, infeliz!

já que me tratas assim
que delito cometi
fatal, contra ti, nascendo?

Descobrir, oh Deus, pretendo,
Mas eu nasci, e compreendo
que o crime foi cometido
pois o delito maior
do homem é ter nascido.
Só quereria saber
se em algo mais te ofendi
pra me castigares mais.

Não nasceram os demais?

Então, se os outros nasceram,

que privilégios tiveram

que eu não tive jamais?

Nasce uma ave,

jóia de tanta beleza

e é flor de pluma e riqueza

ou bem ramalhete alado

quando o céu desanuviado

corta com velocidade

negando-se à piedade

do ninho que deixa em calma:

e por que, tendo mais alma,

tenho menos liberdade?

Nasce a fera, e muito cedo

a humana necessidade

ensina-lhe a crueldade,

monstro de seu labirinto;

e eu, com melhor instinto

tenho menos liberdade?

Nasce o peixe e não respira,

aborto de ovas e lamas,

é apenas barco de escamas

quando nas ondas se mira

e por toda parte gira

medindo a imensidade

de sua capacidade;

tanto lhe dá o sul ou norte.

E eu que sei da minha sorte

tenho menos liberdade?

Nasce o riacho, serpente

que entre flores se desata

e como cobra de prata

entre as flores se distende

celebrando a majestade

do campo aberto à fugida.

Por que eu, tendo mais vida,

tenho menos liberdade?

Em chegando a esta paixão,

num vulcão todo transfeito,

quisera arrancar do peito

pedaços do coração;

que lei, justiça ou razão

recusar aos homens

nobre privilégio tão suave,

licença tão essencial

dada por Deus ao cristal,

a um peixe, a uma fera e a uma ave?